Está na hora de sair de casa

Porque a vida do dia-a-dia deixou de se criar, alimentar e saborear nas ruas da cidade, isolando-se em espaços monótonos e disconexos..

Porque nos movemos num túnel que nos transporta apressadamente das quatro paredes do nosso lar para as do nosso emprego e das nossas catedrais de consumo..
Porque para fomentar a tolerância é importante ter espaços para misturar e conviver com pessoas diferentes e assim descobrir que também somos semelhantes..
Porque uma cidade com gente na rua é uma cidade segura..
Porque o cordão umbilical que sempre ligou a cidade à natureza foi pavimentado, inibindo-a de respirar, de arrefecer-se, de hidratar-se, de abrigar-se do sol e de viver as estações..
Porque os bairros e as comunidades estão a ruir e já não conhecemos o nosso vizinho ..
Porque a esfera pública deve ser o território da humanidade e não da economia e ainda menos do economicismo..
Porque os centros comerciais não são espaços públicos e as estradas não são ruas..
Porque os espaços comuns são essenciais para celebrar, protestar, dialogar, namorar, expôr toda a complexidade do nosso tecido social e unirmo-nos em solidariedade..
Porque a mudança revigora-nos..

Por essas e muitas outras está na hora de sair de casa e fazermo-nos à rua.

Vamos reconquistar território e mudar as fronteiras, montar nas ruas os palcos da nossa expressão artística e cultural..

..em espírito de festa.

domingo, 6 de abril de 2008

ACÇÃO Hortas de Benfica/ CRIL - Relato de uma acção cívica espontânea


No dia 26 de Março fomos alertados por uma membro do GAIA, a Raquel, de que as obras da CRIL estavam prestes a destruir um terreno rural da antiga Quinta das Pedralvas, onde existem hortas desde há mais de 30 anos. A intenção inicial foi de levar as plantas salváveis para novos lares antes do arranque da terraplanagem, mas eis que no terreno fomos confrontados com a ameaça de abate de uma quantidade considerável de árvores e a existência, nesta altura de Primavera, de ninhos com ovos e crias. Encontrámos também hortelões e hortelonas confusos, desorientados e ainda em negação do sucedendo, apesar das retroescavadoras já estarem a cercar o terreno para marcar o perímetro. Com os carros a transbordar de plantas, decidimos visitar o estaleiro onde conseguimos falar com um representante da dona da obra, Estradas de Portugal. Um pouco incomodado com a nossa visita, acordou em arranjar uma reunião com o empreiteiro para discutir a situação e acedeu ao pedido de poupar árvores a serem assinaladas por nós até se encontrar uma solução para o seu transplante. Avisou no entanto que o início do arrasamento (nas palavras dele ‘limpeza’) estava previsto para segunda-feira, sem falta.

Lançámos um apelo urgente de ajuda na marcação de árvores e a máxima recolha de plantas, usando as nossas redes pessoais e das associações a que pertencemos. Durante o fim de semana pais da eco-escola da minha filha, membros do GAIA e outras associações ambientais, amigos e ainda dinamizadores das novas hortas urbanas que estão a nascer em Lisboa e arredores correram o terreno de cima a baixo. Marcámos árvores com fita polícia que eu costumo ter em casa para ocasiões diversas ☺. Falámos com as pessoas das hortas, lançando-lhes o aviso e pedindo-os que nos deixassem levar as plantas. Tentámos perceber onde havia ninhos. E fizémos um levantamento sumário.

Na segunda-feira lá fomos falar com o empreiteiro. Fomos recebidos por dois jovens engenheiros civis e uma muito jovem engenheira do ambiente, solitariamente responsável por acompanhar a componente ambiental, sem fiscalização externa.. Havia alguma abertura para ajudar no transplante das árvores, desde que para um terreno próximo, e para nos dar tempo para resgatar o máximo de plantas. No que respeitava aos ninhos, no entanto, erguia-se uma parede. Adiar a terraplanagem 2 semanas para dar tempo às crias voarem estava fora de questão. Sentimos a total ausência das componentes ambiental, social e histórica no projecto da CRIL cuja planta foi desenrolada à nossa frente. Voltámos com os engenheiros ao terreno, onde a linda figueira das irmãs que cultivavam a horta mais acima já tinha sido derrubada.. O engenheiro jurou novamente respeitar as nossas fitas e de facto fê-lo a partir daí. Obrigámos também a engenheira a ficar no terreno a vasculhar as canas prestes a tombar para assegurar que não houvesse ninhos.

Iniciou-se a fase mais atribulada da acção. Acho que nunca tinha feito nem recebido tantas chamadas por dia nem enviado tantos emails! Contactámos todas as associações ambientais com o mínimo de renome, para além da Agência Portuguesa do Ambiente, o ICN e até a Inspecção Geral do Ambiente, para perceber qual o enquadramento legal do derrube de árvores e ninhos. Chamámos o SEPNA (Brigada Verde da GNR) duas vezes para o terreno, até finalmente encontrarem um ninho com crias (da primeira vez tinham ido de noite..). Falei com os jornais: SOL, Público, agência Lusa,.., que publicaram o apelo, reiterado também em vários blogs. O jornalista do Jornal da Região de Lisboa entusiasmou-se com a causa e publicou a história como artigo de capa. Uma fotógrafa, não me lembro de que jornal, praticamente se amarrou durante uma tarde a um pessegueiro à espera de poder imortalizar o seu derrube, o que provocou uma chamada desesperada do empreiteiro a perguntar se era uma conhecida nossa.

Sobretudo ligámos 50 vezes para o Departamente de Espaços Verdes da CML, nós e uma panóplia de pessoas que se ofereceram para fazer pressão. Pois rapidamente a rede de apoio cresceu, tanto on- como offline, e já tinha dificuldade em saber quem era quem.. Eu e a Raquel andávamos com um papel com os nomes e contactos para nos orientarmos na profusão de confirmados e potenciais apoiantes. Ironicamente perdi esse papel no dia em que finalmente fomos contactados não pela Câmara mas por uma associação de moradores de Carnide que com apoio da sua Junta ofereceu organizar um terreno para receber as árvores. Muitas das plantas tinham entretanto sido transplantadas, por meios nossos e ainda uma carrinha da obra, para a Horta popular da Graça e o jardim da eco-escola Verdes Anos de Monsanto. Foi precisamente esta escola que acabou por mobilizar o maior apoio especializado: uma mãe bióloga do ICN ajudou-nos a encontrar a Declaração de Impacto Ambiental, um pai engenheiro florestal fez um levantamento mais completo das árvores e os ornitólogos da Terramater, empresa verde de dois pais, andaram à procura de ninhos.

No dia 4 de Abril finalmente conseguimos o transplante de uma dezena de árvores. Outra dezena (ou mais, se conseguirmos), decorada com fita, aguarda o próximo transplante a combinar, para depois poder dar a acção como concluída sem encerrar o assunto..

E assim um movimento cívico espontâneo começou com plantas, passou por árvores e ninhos e acabou por chamar atenção para a importância da ruralidade na cidade, denunciando os grandes projectos de ‘utilidade pública’ que privilegiam o betão, o carro e a utopia do progresso em detrimento da história, da natureza livre e das pessoas.